Para muitas pessoas, é praticamente inimaginável a ideia de conviver em uma sociedade distinta, com costumes quase que antagônicos ao que ela adquiriu em sua vida. Viver em sociedade é, antes de tudo, partilhar costumes e crenças, além de preservar características históricas de seu povo e região. Em maior abrangência e discordância, o mundo ocidental e oriental preservam entre si as discrepâncias de duas características divergentes, mas que nem por isso deixam de funcionar ou, ainda, tornam-se superiores ou inferiores uma a outra. Essa aversão ao diferente, quando ocorrida, transpõe um medo do desconhecido, aquilo que caracteriza-se escuro, duvidoso. Essa análise parcial, ao qual um povo emite sobre outro, propõe uma observância que perdura por toda a história do homem.
Analisando um pensamento famoso e familiar, A Caverna de Platão defendia a ideia da ignorância e distorção sobre o pensamento de indivíduos que conviviam numa caverna, sem a noção de um mundo real que fosse exterior a ela. Dentre as principais ideias, Platão considerou, com sua análise metafórica, que o homem sustenta barreiras de pensamento que o impedem de esclarecer algumas visões básicas da vida, as quais, para outros povos, podem ser de fácil entendimento. O filósofo queria dizer, em poucas palavras, que as sombras da realidade refletidas dentro da caverna através da luz e do fogo tendenciavam uma análise irreal dos seres alienados, ou seja, aquilo que não era visto e palpado, era inexistente para um tipo de sociedade, que preservava costumes divergentes.
Como exemplo real do Mito da Caverna de Platão, cita-se os curiosos casos de Amala e Kamala, dois seres humanos criados por um lobo na Índia, por volta de 1920. Estas duas irmãs, após descobertas pela sociedade humana, apresentavam incapacidade de comunicação através da fala, eram quadrúpedes, uivavam, possuíam visão noturna melhor que diurna e conservavam a maioria dos costumes daquele animal que elas atendiam como mãe. Nesse caso, após a tentativa do homem socializá-las e humanizá-las, acabaram por falecer, conseguindo poucos progressos antes de suas mortes.
O que isso tudo tem a ver com o filme citado, O Enigma de Kaspar Hauser (Jeder Für Sich und Gott Gegen Alle, 1974), é que as referências a esse estudo sociológico e antropológico são imediatas. Nesse longa alemão dirigido por Werner Herzog e baseado em um fato real ocorrido na Alemanha em 1820, Kaspar Hauser apresenta uma reflexão direta sobre a cultura e os ensinamentos que a ele eram subtraídos. Criado em cativeiro por um misterioso homem, Hauser apresenta uma forte incompatibilidade racional diante da representação de sua idade. Não fala, quase não fica em pé, é incapaz de contestar sua condição e mostra-se cômodo no local de seu convívio. Este misterioso homem é criado sem qualquer contato social, e alimenta-se de refeições noturnas deixadas por um homem que nunca sabemos quem é.
Estes gritos assustadores ao redor, são o que chamam de silêncio?
Prólogo do filme.
Este enigma apresentado inicialmente é a referência para a futura população que o encontraria e para o próprio protagonista, em sua nova condição. Após aprender palavras e argumentos básicos, esse homem é deixado numa praça com uma carta em sua mão, que o apresenta e revela sua necessidade de abrigo social.
O que o filme tenta fazer, obviamente, é retratar a necessidade do convívio social para o ser humano. Confirmando os pensamentos modernos sobre a relação do homem com a sociedade, seu desenvolvimento se dá a partir dos costumes e aprendizagem que possui com os demais, atendendo a significados típicos de sua sociedade e retornando a ela as considerações, opiniões e entendimentos que considera justo e adequado, o qual se entende por sabedoria e evolução racional. Para Kaspar Hauser, a única referência que possui é a palavra cavalo, isso devido a aprendizagem da palavra seguida do contato com o brinquedo que possuía em seu cativeiro.
Apresentando essa única proposta narrativa, esse longa é muito mais uma representação do estudo sociológico do homem do que um mero filme convencional. A ausência de desdobramentos da história dos personagens, bem como a ausência de um antagonista e um problema emergencial ao longa, remetem-nos à essa característica ímpar, que sugere um pensamento acerca dessas condições do homem. Nesse sentido, o acompanhamento desse drama vivido por Bruno S., sugere uma profundidade concentrada na história do personagem, e abre mão de um final desconhecido.
Analisar O Enigma de Kaspar Hauser é tentar parar no tempo para refletir as divergências sociais dos povos que se distinguem por pensamentos, costumes e, principalmente, suas crenças. Esse raciocínio submete, emergencialmente, à concepção de certo e errado sob a ótica parcial de uma sociedade, com julgamentos de valores e princípios morais e éticos. O homem é um ser naturalmente social, sua necessidade de interação para a evolução individual e o desenvolvimento do pensar e a necessidade da procriação, torna obrigatória a aproximação do ser. Todas essas análises, partem, portanto, do entendimento que Hauser propõe à sua trajetória, e apresentam-se interpretativas sob a visão da história central. Assistir ao filme é, assim, uma oportunidade de reflexão individual sobre si, e noção de seu desenvolvimento e conhecimento, muito mais do que uma experiência cinematográfica exuberante e inesquecível.