Crítica: Tempos de Paz

Não é de grande reconhecimento a filmografia do diretor Daniel Filho. Seu tom novelesco de uma narrativa pouco profunda parece o afastar da possibilidade de dirigir uma marcante obra no cinema brasileiro. Sua aparente pouca capacidade de narrar gêneros distintos, o marca como um diretor de gênero, caracterizado massivamente pela comédia romântica. Contudo, Daniel possui, sim, alguns sucessos de bilheteria no cinema brasileiro, como a sequência de Se Eu Fosse Você, Primo Basílio e Chico Xavier, mas cai facilmente num cinema pouco autoral, ajudado pela constante utilização de atores globais. É importante perceber, ainda, que a popularização de algumas de suas obras não atendem diretamente com a fato de ele ser ou não um bom diretor. E aí descobrimos um trabalho interessante e mais hábil presente em suas obras.

Estamos falando de Tempos de Paz (2009). Ainda que também limitado e com alguns pontos negativos, há dois grandes destaques nessa obra que me fizeram diferenciá-lo. A excelente atuação de Dan Stulbach no papel principal é uma dessas virtudes, e marca uma grandíssima semelhança com o filme O Terminal (The Terminal, 2004), de Spielberg. Fora a forte aparência do ator brasileiro com Tom Hanks (protagonista do longa de Spielberg), a situação dramática de seus personagens desperta boa curiosidade.

Em Tempos de Paz, Clausewistz (Stulbach) é um imigrante polonês que chega ao Brasil num período pós-guerra, mas, por problemas burocráticos, não consegue adentrar ao país. A semelhança profunda dessa "dramédia" se agrava no momento que percebemos que o personagem deve driblar a desconfiança de Segismundo (Tony Ramos) para convencê-lo de suas intenções benévolas. O papel caricato de Stulbach e sua destacável atuação sustentam interesse e empatia suficientes para querer acompanhar o drama de sua história. Com um jeito típico de falar, aliado à pensamentos e opiniões cômicas do personagem, Clausewistz se apresenta como um coitado, frágil, cheio de aparente inocência mas carregado de boa estratégia.

É aí que começamos a atentar para outro ponto forte do filme. Com roteiro assinado por Bosco Brasil, a história apresenta uma narrativa eficaz e muito desafiadora, pautando o filme todo praticamente num único diálogo envolto à um único local. Perceba: são apenas duas pessoas conversando, num mesmo lugar, sem auxílio de fatores que destaquem a atenção do espectador (por exemplo: um objeto, um figurino ou fugas à lembranças dos personagens), e ainda assim o roteiro condiz com grande poder de envolvimento.

Grande parte dessa virtude advém, também, do ritmo empregado ao desdobrar dos fatos. Clausewistz chega ao Brasil sozinho, fugido da guerra e encontra um país em grande abalo político. É aí que ele se apresenta como um ex-ator e agora agricultor, sem ter nenhum calo nas mãos. Fatores curiosos que despertam a curiosidade e o receio de Segismundo, que resiste em assinar o salvo-conduto que liberaria o rapaz a entrar no país. O roteiro é amarrado, ainda, à recorrentes histórias e lembranças do tempo de guerra e do teatro vivenciados pelo polonês na Europa, confrontados com a ríspida opinião de Segismundo, que narra sua tragetória dentro da política nacional.

Assim, percebe-se mais do que uma história contada entre momentos políticos, ao se revelarem sutis críticas à postura dos chefes de Estado no período de abalo econômico, mesmo que os argumentos de Segismundo escondam a fidelidade com a história real dos imigrantes ao Brasil, se percebe um tom de crítica à política, ao mesmo passo que ela tenta ser real, como o momento em que Segismundo tenta arrecadar propina do imigrante e, em um tom mais profundo, à sua postura quase como um sargento, cumpridor de ordens e incapaz de agir com dó, respeito ou bom-senso. Seu tom autoritário e frio, contudo, nos é contrastado com opiniões suaves e reflexivas de Clausewistz, que, aos poucos, abalam Segismundo e convencem-no de dar uma chance ao imigrante.



Tempos de Paz amarra-se, então, como uma obra de homenagem e referência. À profissão de ator, a capacidade de romantizar situações fora do cotidiano, de narrar o absurdo e ser reverenciado por algo que, às vezes, não entendemos mas adoramos; e, também, aos próprios imigrantes que vieram ao Brasil por diversos motivos, pessoas que tiveram importância na história da arte nacional.

Não fosse pequenos deslizes e ausência de certo capricho nessa obra, ela poderia ganhar valor ainda mais destacável. O trabalho de arte/efeito visual demonstrou-se péssimo ao focar a mão do Doutor Penna (interpretado pelo próprio diretor Daniel Filho, e com atuação bastante contestável), ainda a atuação muito razoável de outros atores globais, como o desprezível Ailton Graça no papel de Honório e Louise Cardoso, como Clarissa; atuações ruins que não comprometem o longa por sua pouca relevância na trama, e principalmente pelo foco narrativo centrado em atuações destacadas de Tony Ramos e Dan Stulbach. Sendo muito crítico, sabemos que a história central guarda algumas poucas situações forçadas, mas elas jamais chegam a comprometer o brilhantismo do poder narrativo desse trabalho.


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Crítica: O Pagamento Final

O crime carrega em si algumas regras irrevogáveis. Carlito Brigante (Al Pacino) tem consciência dessas regras e o perigo que elas oferecem, mas tenta driblar seu próprio passado para, como só ele sabe, definitivamente trocar de vida. O mafioso carrega em seus ombros a fama de um delinquente, daquele que construiu seu império e burlou a sociedade com a sua inteligência e, principalmente, sua noção do perigo. Carlito está disposto a usufruir de uma vida digna, mas sabe que, após sair da prisão, terá de duelar contra si e seus antigos comparsas para convencer-se de seu novo objetivo. Ele sofrerá a punição do crime pela sua regra máxima, e ele bem sabe qual é.

Carlito parte, assim, para acertar as contas com sua vida criminal, certo de que seus dias de mazela estão contados. Tudo é uma questão de tempo, até ele juntar o dinheiro necessário para fugir para as Bahamas ao lado de Gail (Penelope Ann Miller), com quem manteve uma relação conturbada antes mesmo de ser preso por tráfico de heroína. Gail cumprirá o papel de motivadora nessa sua nova caminhada, o porto-seguro que Carlito almeja como recompensa e caminho de sua maior felicidade.

Depois de apenas cinco anos cumprindo pena prisional por seus atos, seu advogado e maior amigo David Kleinfeld (Sean Penn) convence, em tribunal, que Carlito não precisava cumprir os 30 anos a que fora condenado, estando paga a sua dívida com a sociedade. Carlito sabe e relata: Sua conta foi paga com Deus, sua nova mentalidade é a recompensa de sua conquista e, sua meta, é uma felicidade honesta. Balela, para um juiz cansado dessas histórias com promessas de renovação, ele se vê obrigado a soltar Carlito, mas seu leve sorriso sarcástico nos revela que ele sabe que devolveu às ruas um perigo à sociedade. 

É desse mote que O Pagamento Final (Carlito’s Way, 1993) constrói uma fantástica narrativa para contar a trajetória do porto-riquenho Carlito Brigante. Livre de sua pena, Carlito revê no gueto a condição de astro criminoso, uma referência e um ícone para os demais mafiosos que ali se instalam. Solto, ele briga contra seu passado, recusa sua fama, desvia do perigo; mas sabe que o mundo do crime não guarda amigos, senão o oportunismo e a vitória do melhor estrategista, aquele que sabe com quem e como se envolver.

Construindo essa narrativa de modo primoroso, o diretor Brian de Palma projeta uma longa cena, de perfeita execução. Atento a qualquer tipo de detalhe, desde o enfoque ao olhar pressentido de Carlito e sua experiência, até o sorriso fácil e ingênuo de seu sobrinho, é importante perceber a magnífica técnica e o absoluto domínio sobre todas as informações visuais inseridas em cena, passada ao fundo de uma barbearia, onde o sobrinho de Carlito planeja, inocente, realizar sua primeira “tramoia”. Carlito percebe, desde o sotaque porto-riquenho de um inglês precário à porta entreaberta de um banheiro que esconde muito mais que uma privacidade, o perigo desenhado ao jovem rapaz, e age em prol de sua vida, mesmo que seja tarde demais. Nessa cena que dura praticamente dez minutos, nada é em vão, nem mesmo o momento em que as músicas caricatas de Porto Rico alternam como trilha sonora, nem o porquê de aumentá-la em determinado momento. Aquelas paredes vermelhas e de textura forte remetem, óbvio, ao perigo, e, não por coincidência, nos levam a uma alusão ao sangue. Carlito contra-ataca, e deixa de sobreaviso ao sobrinho morto pela sua própria imaturidade, uma verdade tardia sobre o mundo do crime: Pobre sobrinho, nesse mundo, não há espaço para amizades.



É desse tom genial que todas as cenas, sem exceção, são executadas. Conciliando uma direção absolutamente madura de De Palma, após seus maiores sucessos (Carrie – A Estranha, Scarface e Os Intocáveis), com um roteiro primoroso e bem construído, mesmo que com um enfoque um pouco incomum, O Pagamento Final registra sua importância na seleta lista de filmes de gangsteres, e é agraciado pela direção madura das mãos de um mestre do cinema.

É importante ressaltar a importância dada a cada personagem coadjuvante nessa história. Assim, cada um possui ao menos um grande momento envolto ao personagem de Al Pacino, e contribuem com atuações importantes para o desfecho final, como o par romântico de Carlito, Gail; o seu advogado e melhor amigo, David; além de seu sobrinho e das amizades do mundo suburbano, como antigos comparsas e os novos sócios de seu bar.

Pautado num contexto romântico, a trajetória de Carlito guarda momentos memoráveis acerca de sua vida íntima. A trama narrativa do famoso gângster é narrada com um objetivo claro ao personagem; o que Carlito quer é juntar o dinheiro necessário, com a ajuda de seu bar, e fugir com Gail ao paraíso. É importante e curioso perceber, também, que a opção de De Palma em deixar um imenso spoiler logo no começo de como o filme iria acabar, não desmerece em nada a profundidade e as surpresas dessa história, aliás, chega até a ser engraçado o modo como torcemos por um criminoso, cientes de seu desejo pacífico, e esquecemos que já nos foi contado seu fim. Queremos, mesmo, que aquilo seja uma inverdade, queremos ser traídos pela narrativa, mas ela não pode trair a mensagem deixada por Carlito ao ver seu sobrinho morto naquela cena criminosa.

No que se refere ao fator motivador dessa história, o desejo de fuga com Gail, De Palma consegue, em rara felicidade, construir um romance de imensa qualidade, com apenas cinco ou seis grandes cenas. É de se rever o momento em que Carlito persegue Gail em sua aula de dança, em meio a uma chuva fotografada em tons de azul-escuro e que logo nos remete a Cantando na Chuva (Singin’ in the Rain, 1952), onde o personagem sobe no terraço de um prédio, e cobre-se por uma tampa de lixo para proteger-se da chuva. É de grande apelo sentimental o modo como os dois voltam a se ver, quando Carlito corre atrás de Gail citando seu próprio nome para que ela, surpresa, vire emocionada ansiando pela sua figura. Como ápice desse romantismo, uma cena filmada em uma porta entreaberta da casa de Gail sela a magia dessa relação com uma encantadora cena (ainda com uma clara referência a O Iluminado), ela faz um charme, ele quebra a porta, e contracenam com a música You Are So Beautiful, de Joe Cocker, ao fundo.

Carlito vive, entre emoções, esperanças e a insegurança da incerteza de poder ir as Bahamas com Gail, um turbilhão de momentos cruciais. Ele deve reconquistar Gail, convencê-la de fugir consigo e ainda driblar seu advogado Kleinfeld, que agora está também se inserindo no meio criminoso, ainda que de modo inexperiente, e suplica pela ajuda de Carlito para eliminar um homem que ameaça matá-lo.



Não há tempo para pensar, Carlito deve ser hábil em cada lance, sabe que sua felicidade depende de passar por este arriscado momento. Em meio a noção de que muitos querem matá-lo, Charlie, como Gail carinhosamente o chama, compra as passagens de trem, e segue-se uma grande cena de perseguição entre ele e os chefes de Estado. Longa e com um clímax perfeito, De Palma nos presenteia com um imenso e verdadeiro sorriso de Carlito, correndo sem limites para os braços de Gail, que já o espera na porta do trem. Essa porta é uma metáfora ao paraíso, e ele cessa sua fuga aos pés da felicidade pois, antes de tudo, Carlito já foi um homem da máfia, e sabe que merece pagar, pagar para ter noção que o crime não perdoa sua escolha.

Carlito se vê deitado numa maca, tentando ser salvo da escolha que fizera. Em pensamentos íntimos, recalcula sua vida, sua missão, julga a todos que fizeram parte de sua trajetória, mas sabe que é justo seu destino. Aqueles dizeres “Fuga ao Paraíso” descritos numa placa, ao qual Carlito observa, já guardam Gail e seu filho, parados, esperando finalizar essa jornada que não merece tê-lo como coadjuvante, para mover-se ao dançar de Gail nas Bahamas, já desfrutando dessa vida recompensadora. A vida recolocava em ordem, assim, cada qual com seu destino e seus merecimentos.


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Crítica: Halloween - A Noite do Terror

Alguns mistérios são difíceis de decifrar. Não, não se trata do mistério envolto na história de Halloween - A Noite do Terror (Halloween, 1978), filme de terror dirigido por John Carpenter. Afinal, por que esse filme ganhou reconhecimento e chegou ao status de um dos clássicos do gênero? Nem a comum explicação para acobertar possíveis falhas do filme consegue desviar os incontáveis defeitos que ele possui. Normalmente, dizer que o filme é antigo e que a época de sua produção era diferente e os recursos eram bem mais escassos, soa fácil para justificar possíveis deslizes. Ora, 1978 é logo ali, dá pra citar obras realmente emblemáticas do cinema que foram feitas em momentos bem mais difíceis.

Uma das possíveis – e raras – justificativas para entender a fama que ele ainda carrega, é comparar a sua produção no gênero do horror com os demais exemplares do gênero produzidos até então. Mas, aí, entendendo que esse argumento realmente justificaria o seu sucesso, seria automaticamente reconhecer que seus antecessores são de qualidade altamente duvidosa.

É, até certo ponto – apenas –, complicado analisar uma película deste nível quando se já assistiu muitas das suas excelentes obras sucessoras. Facilmente, quem hoje assiste a Halloween, acaba por julgá-lo com uma quantidade de clichês que talvez ainda não tenha se visto. Porém, o filme é datado do ano de 78, e essa história do clichê dificilmente irá fazer sentido.

Como os defeitos são muitos, prefiro citar, de imediato, uma qualidade importante: a trilha sonora – embora clássica e, por isso, até certo ponto, fácil de agradar – marca as principais e repetidas cenas de suspense/terror que o filme desenvolve; ainda que fique uma dúvida no ar se essa trilha é realmente boa ou se o seu mérito mais se deve ao fato de ser inconfundível, é possível, mesmo assim, classificá-la como interessante, mesmo que a dúvida ainda persista.

Contudo, é triste e curioso perceber, que não é de grande facilidade compreender se os recorrentes tons trash são propositais ou não. As péssimas escolhas para definir o fim dos personagens nos momentos mais importantes do filme, deixam a entender que essas cenas gore, de um trash mal conduzido, foram de péssima direção. O pior, claro, é perceber que se trata de um terror que era para ser levado a sério e, no fim, se mostrou trash; não um trash que simplesmente queria ser trash.

Como se não bastasse o principal elemento negativo de uma obra de horror, Carpenter ainda é infeliz ao não sustentar boas justificativas aos atos de seu antagonista. Não explica de onde veio, o que quer, ou a razão de suas atitudes. É um serial killer que se aproveitou do espírito da tradição do halloween para voltar a sua cidade e aterrorizá-la; é uma desculpa muito questionável para se satisfazer como razão aos problemas. Dessa forma, o diretor pauta-se unicamente a apresentar seu vilão em cenas clássicas de aparecimento. Depois de três oportunidades que o antagonista aparece, todas as próximas cenas perdem a graça, é facílimo perceber onde e em que momento ele irá aparecer, ajudado, ainda, por enquadramentos que só faltam apontar para a posição que irá ocupar em cena. Broxante.

Buu!


Esse vilão sustenta o padrão clássico de serial killer de filmes de horror que ficou famoso pela sua burrice. Apresenta-se malvado ao extremo, utiliza uma máscara para acobertar seu rosto e não é capaz de matar duas criancinhas e duas meninas apavoradas. Tem uma faca na mão e perde o duelo para uma garota num armário que o vence lutando com um cabide; ora, isso é um zumbi, não é não? Aliado a isso, é possível perceber, já na primeira cena, uma grande falha na direção da cena de suspense, que é também o primeiro plano do filme: aquele que se apresenta como um menino no início e, de imediato, não nos é revelado, é narrado por uma câmera trêmula em primeira pessoa, nos colocando em seu campo de visão. Após revelar que aquilo ali seria um garotinho de, no máximo, 1,50m, fica explícita a falta de percepção para narrar as antigas cenas em um ângulo mais condizente com a altura do garoto.

Halloween, então, carrega em si uma fama questionável. Não dá para acreditar que esse tipo de horror funcionava tão bem no fim dos anos 70. Sem trabalhar de modo eficiente seus personagens, com atuações muito razoáveis, inúmeras falhas na direção e um enredo incapaz de justificar a conexão e a profundidade da história, pode-se dizer, assim como outros exemplos, que Halloween se encaixa no padrão filme-evento, pautando sua narrativa numa tradição que é muito mais desenvolvida do que a própria história que ele mesmo deseja contar.


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Crítica: O Gigante de Ferro

O sucesso de uma história advém da forma como ela é contada. Apenas um bom roteiro não faz, por si só, um bom filme; assim como um bom filme não se pauta somente num bom roteiro. A persuasão e o tom cativante de uma história são sempre os elementos fundamentais para captar a atenção para a história que se pretende contar. Para chegar nesse nível de imersão, pode-se atentar para o interesse da empatia do espectador quando se narra um drama ou romance, ou uma fuga ao desconhecido quando se opta por um conto científico, de fantasia ou aventura. Ou, quem sabe, uma mescla dessas características.

O Gigante de Ferro (The Iron Giant, 1999) tem um pouco de cada uma dessas virtudes. Não é, acredito, perfeito ou quase isso, mas garante sua importância no poder de envolvimento que impõe em cada cena. A trama parte de um interesse narrativo eficaz, concentrando o foco da história no mundo mágico de uma criança que descobre a existência de um gigante de ferro, um ser que veio do espaço e que se alimenta somente de aço. Misturando essa boa parcela de ficção na relação da criança, se constrói com facilidade o interesse maior de envolvimento na relação desses personagens.

Essa eficiente animação não é tão simples a ponto de que somente as crianças gostem, nem tão complexa a ponto de cair somente no interesse dos adultos. Discorre, nas suas entrelinhas, com certa facilidade de compreensão, um tom de metáfora, que fala a linguagem das crianças e sua constante vontade de apreciar a fantasia, coincidindo com críticas sutis à relação do homem-monstro, como bem se revela em algumas circunstâncias.

A multilinguagem do longa parte, em princípio, da relação de amizade construída entre o menino e o Gigante de Ferro. Escondidos na mata, os dois trocam os primeiros diálogos com receio e encanto, até adquirirem confiança e fortalecer suas amizades. O poder de encanto e, obviamente, o simples fato de ser uma criança, fazem com que ele não meça o perigo e os esforços para cuidar de um “ser” que poderia causar a destruição de toda a pequena cidade de Rockville, pequeno vilarejo no interior dos Estados Unidos nos anos de 1950, onde a história se passa.

O garoto é, ainda, esse poder de irresponsabilidade e inocência benévolas, que permitem, em situações inimagináveis, conviver com passividade este momento de descobrimento. Aos poucos e facilmente, vamos descobrindo que o Gigante de Ferro é inversamente bondoso, comparado ao medo causado pelo seu tamanho.

O garoto percorre, assim, uma tentativa de cuidar de seu “bichinho” de estimação, e deve driblar a intenção de agentes do governo em capturar, sob interesses políticos, o Gigante de Ferro. É importante perceber, nesse caso, o final reflexivo e questionador, mesmo que em segundo plano, do desdobrar da história.

O Gigante de Ferro é uma história que, em princípio, se parece absurda, conta com elementos incomuns e traz a desconfiança sobre o poder narrativo da obra. Essa desconfiança vai se perdendo, no entanto, desde os primeiros minutos de exibição. Por mais que essa possa parecer uma simples história infantil de um menino que encontra um ser monstruoso e decide adotá-lo, é interessante perceber como a comoção com a amizade e fatores humanos intrínsecos à conduta do homem ganham importância em várias cenas. A história não se permite dar maior ênfase à essas críticas sutis sobre o homem e seu pensamento, mas controi uma narrativa intencionada na leve percepção do que aquela relação quer dizer, bem como as intenções governamentais e políticas em que a história se passa.

 


O Gigante de Ferro, dirigido por Brad Bird (Ratatouille, Os Incríveis), é um desses tesourinhos de locadora. Pouco divulgado e facilmente esquecido, essa excelente animação certamente ganhou injusto descrédito entre distribuidoras e cinemas, e, consequentemente, pouco conhecimento dos espectadores. Para quem gosta de desenhos fora do grande circuito comercial e em sua maioria de cunho autoral, assim como o bem conhecido japonês Hayao Miyazaki, com – dentre outros – seu adorável Ponyo – Uma Amizade Que Veio do Mar (Gake no ue no Ponyo, 2008), O Gigante de Ferro é caminho fácil para mais uma animação cativante, envolvente e que perdura na memória de seus filmes preferidos do gênero.

Com a desconfiança aparente da obra, torna-se fácil se emocionar com os bem articulados momentos de comicidade, além de um desenho ainda feito, em sua maior parte, à mão e com pouca computação gráfica, que torna a experiência mais rica e real sobre essa envolvente história.




Crítica: A Árvore da Vida

O cinema que o diretor Terrence Malick propõe é para poucos. Essa intenção audaciosa e ambiciosa entrega uma versão de poesia filmada, palavras transpostas à tela em desordem narrativa, uma não-intenção de atingir o lugar-comum, ao interesse de ressaltar a experiência sensorial de uma narrativa pouco observada. A Árvore da Vida (The Tree of Life, 2011) é uma saudação à vida, um filme disposto a mexer com crenças e dogmas, e é um bom convite ao ato de pensar.

Este ato, inclusive, é exigido em todos os minutos de projeção. Iniciando sua narrativa com a apresentação de seus personagens e seu contexto, o diretor toma o sentido inverso de Kubrick em 2001 – Uma Odisséia no Espaço (2001 – A Space Odissey, 1968), e volta na história para encontrar razões para narrar o drama da família central. É exuberante e marcante, entre imagem e som, a escolha de narrar o tempo somente com imagens, como se a ausência do homem naquele momento o tornasse incapaz de realmente narrar a origem de sua história e do próprio local onde vive, cabe a natureza narrar-se por si só. Dotado de invejável paciência e inteligentemente interessado na imersão de seu espectador, Malick atravessa essa história mostrando o Big Bang, numa sufocante apresentação visual, até passar pela era jurássica e seus dinossauros e imergir no evolucionismo com a origem da vida marinha, concluindo sua visão darwinística.

De poucas narrativas em off, o diretor exclama uma atenção ao natural, à apresentação da grandiosidade, à percepção de inferioridade e – quase – insignificância de quem pretende extrair dessa experiência um resultado mais palpável que sua própria dúvida, sua incerteza sobre si.

De fotografia perfeita, Malick garante a mesma qualidade visual proposta em sua minúscula filmografia. Com takes característicos, o filme busca ângulos perfeitos, seja em tomadas aproximadas para mostrar em detalhes a beleza daquilo que é natural, até tomadas aéreas, tão distantes que por vezes se percebe referência a 2001. O que é pertinente ressaltar, antes de tudo, é que Malick é um filósofo de profissão, professor universitário, que faz, em média, um filme a cada dez anos. Para ele, nada parece mesmo ser mais importante que ir à contramão do que pede um roteiro conveniente, e tentar encontrar em situações simples e reflexões grandiosas, um sentido à inconveniente noção de desordem humana.


 
Não é fácil assistir ao filme, isso é notório. Fato é que é possível admirá-lo, senti-lo e mesmo assim não saber ao certo o que tudo quer dizer. Por vezes, pode ser recorrente a dúvida em saber se toda essa experiência foi proveitosa, enriquecedora, ou uma bagunça incapaz de encontrar coerência em sua linguagem. O tom de profundidade fica a cargo do espectador, não se observa interesse em manter uma história conveniente, do tipo “curva de sino”. Essa profundidade é relativa, necessita-se dotar de um interesse verdadeiro e insaciável para, com alguma felicidade, concluir em nexo as intenções aparentes dessa obra.

Fora toda essa análise que parece apresentar um filme confuso, A Árvore da Vida, ainda assim, é simples em diversos pontos. Pautado numa visão predominantemente religiosa, tem-se, quem sabe, um dos melhores filmes a respeito do assunto, com um importante interesse em manter a imparcialidade, não se mostrar tendencioso a ponto de julgar o que é certo ou errado, enfim, de querer impor argumentos nem tão digeríveis por boa parte dos espectadores.

Como centro narrativo, a história busca revelar a relação de pai e filho, com a criação dos filhos alternando momentos de severidade e compaixão. A jornada se intenciona em finalizar-se na busca do perdão do filho para com o pai, diante da vivência arrependida do jovem central da trama. É curioso perceber que, ao iniciar a apresentação, o filme logo desdobra-se a revelar que "o homem ensina que a vida segue dois caminhos: o da natureza e o da graça". Posteriormente, vemos notoriamente essa divisão na criação dos filhos. O pai é uma figura centralizadora, severa, punidora. A mãe, contudo, é o lado maleável, que exerce seus ensinamentos com mais compaixão. Não curiosamente, essas figuras buscam interpretar a citação inicial do longa, ao qual resume que a felicidade pode ser alcançada em ambos sentidos, mas a escolha de um caminho é ação irrevogável. A vida e sua análise através de religiosidade e não religiosidade, são a metáfora inserida nesse pensamento.

A leitura filosófica que aqui se percebe, relembra o interesse narrativo e principalmente final de outra obra do diretor: Além da Linha Vermelha (The Thin Red Line, 1998) também possuía uma visão incomum, e buscava analisar uma guerra sob outra ótica, sob uma análise argumentativa, em que, naquele caso, combatentes sofriam física e psicologicamente às destruições por eles mesmos causadas, ao interesse de buscar justificativas maiores sobre aquela violência exagerada.

Dessa forma, a filmografia deste talentoso diretor não deixava dúvidas sobre a construção de seu último longa e, assim, reclamar da opção narrativa de A Árvore da Vida é reconhecer desconhecimento nos filmes anteriormente realizados por Malick.

É interessante perceber, no entanto, a atenção dada pelo diretor na construção de sua jornada ao Universo, onde detalhes e simplicidades da natureza e do cotidiano da vida humana são as ferramentas para buscar toda essa profundidade almejada. De infinitos cortes, por vezes até demasiados – acredito poder julgar – o filme constrói aparentemente sem nenhuma pressa todo esse clima sensorial, seja no enfoque a uma cachoeira, a uma planta, a uma água-viva e ao cotidiano da família central da trama, até a imensidão do Cosmos, uma busca paciente em contrapor a real grandeza material do Universo.

 
 
Sem dúvida, A Árvore da Vida apresenta inúmeras características para se comparar à obra – para mim – máxima de Stanley Kubrick. 2001 – Uma Odisséia no Espaço contém traços singulares e muito característicos, a destacar-se a inigualável vontade de mostrar a imensidão do Universo, algo que Malick não apenas se assemelhou como referenciou claramente nessa obra. Da película de Kubrick, o espaço aberto à subjetividade, o convite à interpretação incansavelmente solicitada na obra clássica, torna ímpar a experiência de assisti-lo. E, não menos importante, a forma como se finaliza toda essa jornada, discutindo o perigo sobre o futuro da inteligência humana, cessa qualquer dúvida a respeito das maiores intenções de 2001. Essas similaridades todas, em maior ou menor escala, estão presentes na película de Malick. Daí a necessidade de relembrar as semelhanças dos dois filmes: A Árvore da Vida é, sem dúvida, o 2001 de Terrence Malick.

É perceptível, ainda, o acertado desinteresse em fechar a obra com uma possível visão parcial e imponente sobre toda a sua jornada. Seria de grande incoerência, entretanto, que víssemos um final coeso, de forma quase palpável, sobre as intenções maiores e mais profundas do diretor. Maior seria, inclusive, a inocência do espectador em crer que isso se realizaria, senão um final aberto, a convidá-lo a interpretar com sua experiência vivencial se ele mesmo é capaz de encontrar razões para entender tão bem a obra, assim como o homem, em sua maior arrogância, julga entender a vida.


Destaque sonoro:




Artigo: A Máfia no Cinema


A tarefa de falar sobre os filmes de gangster não é simples, começando por que o tema virou gênero e esse se capilarizou em diversas vertentes, trazendo um começo mais sociológico da formação das famílias italianas em meio à sociedade americana pós-depressão de 1929, até uma abordagem mais personalizada em filmes atuais como em Estrada Para a Perdição (Road to Perdition, 2002), Inimigos Públicos (Public Enemies, 2009) e O Gângster (American Gangster, 2007).

Começamos pois, com O Poderoso Chefão (The Godfather), 1 e 2 (1972) e (1974). Inicialmente é bom ressaltar que o cinema americano até a década de 70 era bastante conservador quanto a moral de seus filmes, era algo imprescindível para a grande indústria, que os filmes seguissem premissas básicas como; um protagonista com atitude exemplar e um final que trouxesse esperança ao telespectador.

O Poderoso Chefão (The Godfather, 1972) foi um marco na história do cinema por retratar a família Corleone de forma imparcial, imprimindo ao Patriarca Don Vito Corleone uma figura benevolente e sábia que entendia a alma de seus familiares e inimigos e repassava seus sentimentos com gestos brandos e implacáveis, os quais só puderam ser traduzidos pela maestria de Marlon Brando.


Cabe ressaltar que os dois primeiros filmes são o desdobramento do livro homônimo de Mario Puzzo (The Godfather), portanto vamos tratar dos dois de forma conjunta. Inicialmente Don Vito Corleone, se vê em um impasse quanto ao acordo sobre a venda de heroína, negócio lucrativo que as outras famílias italianas de Nova Iorque buscavam apoio para entrar, mas Corleone tinha estabelecido uma relação muito 'Boa' com os juízes locais e não queria colocar seu prestígio a perder com algo que era considerado imoral por todos.

Daí advém uma série de conflitos e mortes que culminam com uma guerra entre as famílias que se resfria quando Michael Corleone define o conflito de modo siciliano, no jantar com um tiro na cabeça dos principais responsáveis pelas desavenças. A segunda parte do filme resgata a infância do Patriarca na cidade de Corleone no sul da Itália e as relações cruéis que a máfia estabelecia com seus cidadãos miseráveis, após isto o filme trata da volta de Michael do 'exílio' e sua ascensão ao posto de chefe da família, ou seja, o novo Don Corleone, no entanto o filho acaba não se tornando um exímio conciliador como o era seu pai e percebe que a busca pela legalidade era o melhor caminho para livrar a família de um futuro parecido com o seu passado.

Francis Ford Coppolla, diretor dos dois filmes não foi alçado aos céus por um grande vislumbre artístico/visual, como seria Stanley Kubrick, mas por transgredir a forma de contar uma história em um período, e o fazê-lo de uma forma facilmente interpretável por todos, ou seja, a máfia italiana era muito parecida na realidade com os seus filmes e os personagens eram reconhecidos diariamente pelos habitantes do noroeste americano.

Era uma Vez na América (Once Upon a Time in America, 1984), único filme do "gênero" de Sergio Leone, mostra esse contexto americano por outro lado, não das grandes famílias mafiosas, mas de um pequeno grupo de amigos judeus que viviam a margem dos já estabelecidos italianos e que aos poucos vão aumentando seus crimes e ganhando respeito, mas a relação entre os dois protagonistas vai se tornando cada vez mais complicada a medida que um deseja ganhar poder se submetendo aos Italianos e o outro busca uma solução independente, porém menos lucrativa.

O filme trata das relações de amizade que se conflitam com as ações criminosas, assim como O Poderoso Chefão aborda as relações familiares, porém ambos os filmes abordam o contexto social como o grande motor dos acontecimentos.

Iniciando as marcantes contribuições de Brian de Palma no gênero, do lado sul dos Estados Unidos foi relançado Scarface (idem, 1983), o filme que expõe a ascensão dos Cubanos em Miami, que fugindo das mazelas do Regime Comunista encontravam um país rico, porém segregado que tratava com hostilidade os latinos, contudo para aqueles que nada tinham a perder, o crime era um caminho simples para recompor a dignidade, Tony Montana (Al Pacino) é a reprodução extrema dessa condição, ele age espontaneamente como um trator, até se tornar tão poderoso que a sua grande ameaça é o seu próprio ego.

No final dos anos 80, após o lançamento do já aclamado Scarface, Brian de Palma entregaria ao gênero outra grande obra contextualizada no crime. Os Intocáveis (The Untouchables, 1987) tratava do poder da máfia sob uma ótica realista, e jogava à mesa as possibilidades que a máfia chefiada por Al Capone, personagem antigo que, nas mãos de Robert De Niro ganharia ares de perfeição, poderia trazer à imagem de “Estado incorruptível”. Atuando de forma estupenda, De Niro tirara do bom moço Eliot Ness (Kevin Costner) qualquer chance de protagonizar uma atuação mais enriquecedora que a dele.

O filme retrata a época da Lei Seca, nos anos 30 nos Estados Unidos, e tem como mote narrativo a corrupção de Al Capone no Estado, duelando com as forças benévolas de Eliot Ness, que formara sua equipe de agentes para enfrentar o crescimento da gangue e suas possíveis mazelas ao Estado. De cenas marcantes no cinema e mais uma excelente trilha sonora assinada por Ennio Morricone, Os Intocáveis seria reconhecido como um dos grandes filmes do gênero criminoso.

Já nos anos 90, Al Pacino voltaria a estrelar outra obra de cunho grandioso. Desta vez, o pequeno grande ator dividiria as marcantes atuações com Sean Penn. O Pagamento Final (Carlito’s Way, 1993), trata de um advogado (Penn) que tira da prisão Carlito (Al Pacino). Também assinado por de Palma, a última grande obra do diretor trataria de como as influências maléficas sofridas por Carlito o recolocariam no caminho do crime.

Preso por tráfico de heroína, Carlito pretende colocar no eixo sua nova vida de ex-presidiário e ir com sua mulher viver honestamente nas Bahamas, mas sofre na mão de seu próprio amigo e advogado David (Penn) as influências que ele não conseguiria contornar. Filme de direção excepcional, com um romance inteligente envolto à narrativa, e cenas magistralmente bem encenadas, principalmente aquela em que Carlito vai acompanhar seu sobrinho em um novo “esquema”.

Para ficar nos grandes é hora de adentrar a 'Era Martin Scorsese', ele produz dois grandes filmes na década de 90, Os Bons Companheiros (The Goodfellas, 1990) e Cassino (Casino, 1995), ambos com personagens quase idênticos. Os filmes são mais rápidos do que seus genitores, a ação é mais intensa e a história segue uma narrativa que não deixa tanto espaço para as nuances, contudo a maestria de Scorsese não faz com que o filme fique sem chão, o espectador é absorvido completamente pela narrativa.

Os Bons Companheiros (The Goodfellas, 1990) trata de um Irlandês que cresce no meio da máfia italiana, porém seus amigos constantemente trazem problemas para os chefes italianos que não estão dispostos a resolvê-los, recaindo a responsabilidade para os três amigos.

Cassino (Casino, 1995), remete ao terceiro filme de O Poderoso Chefão (The Godfather: Part III, 1990), quando as famílias italianas do noroeste americano começam a expandir sua influência por uma região mais 'tolerante' a condutas ilegais, ou seja, Nevada - Las Vegas, no meio do deserto começava a surgir um polo de jogo e prostituição.

Contudo as famílias italianas são novamente um pano de fundo longínquo para os amigos erguerem seus impérios na terra promissora e sofrerem as consequências da ganância desmedida e atitudes intempestivas. Nesses filmes o contexto deixa de ser um protagonista para se tornar um coadjuvante de papéis extremamente fortes como Joe Pesci (Nicky Santoro) e Michele Pfeifer (Ginger).

Pulando para a década de 2000 vale a pena citar dois grandes filmes, Estrada Para a Perdição (Road to Perdition, 2002) o talentosíssimo Sam Mendes faz um filme que tem como centro a relação de Pai e Filho, numa escalada de violência quando a o pai entra em conflito com a máfia irlandesa. Este é um filme visualmente impecável e de uma sensibilidade ímpar em meio de a uma fuga de Michael Sullivan (Tom Hanks) para salvar o filho dos seus antigos patrões.

Na minha opinião, o último grande filme é Os Infiltrados (The Departed, 2006), novamente Scorsese trata com maestria a relação entre a máfia e seus subordinados, os atores se superam causando uma aflição constante quando um policial está infiltrado na máfia e a máfia na polícia, é uma caça mútua que deixa qualquer espectador sem fôlego e sem lado, porque não há ninguém moralmente limpo na trama, nem a lei, nem o crime podem são apresentados como o time certo para se torcer.

Admitimos aqui que a nossa pequena genealogia dos filmes de gangster pode excluir alguns grandes títulos, sobretudo filmes anteriores a década de 70 e filmes ‘estrangeiros’, ou não americanos, contudo acreditamos que pode ser um bom guia para adentrar o gênero sem medo de perder tempo com filmes ruins.

Crítica: Um Conto Chinês

É notável a ascensão da produção do cinema argentino. Também é fácil perceber que Ricardo Darín tornou-se o “queridinho” dos filmes sul-americanos. Sem páreo para rivalizar, é natural hoje em dia elevar o status da importância das produções de nosso país vizinho. Esse atual pensamento é, antes de tudo, um prêmio, uma resposta ao notável trabalho que por lá se faz; e cita-se, como maior exemplo, o grandioso O Segredo dos Seus Olhos, ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro em 2010.

Pois bem, essas colocações só servem para contextualizar o cenário atual das produções cinematográficas sul-americanas e, principalmente, atentar àqueles que ainda desviam seus olhos e insistem em tentar encontrar pérolas – quase que – inexistentes no cinema tupiniquim.

Ricardo Darín é mesmo talentoso, e já desdobra em seu currículo papéis centralizados nas maiores obras do cinema local, fato este que o torna respeitado e notado aqui no continente. Essas atuações, ao que parece, começam a demarcar uma época, um período relevante para o frágil currículo do cinema local (se comparado às americanas e europeias).

Uma virtude percebida e desenvolvida por lá é a habilidade de falar vários “idiomas narrativos”. Tornou-se rotineiro presenciar histórias que insistem em fugir do lugar-comum, típico de cinema pobre, sem capacidade de desenvolver uma linguagem concisa para qualquer roteiro que seja, algo que o cinema brasileiro (e é difícil não comparar) ora ou outra opta por fazer, mas geralmente cai no lugar-comum.

Desse modo, encontramos chão para analisar em que nível se encontra Um Conto Chinês (Un Cuento Chino, 2011), dirigido por Sebastián Borensztein, baseado em fatos reais e estrelado pelo já citado Ricardo Darín. Partindo de uma premissa incomum, o “prólogo” (se é que assim pode-se dizer) estabelece uma situação de constrangimento, algo que já na primeira cena opta por chocar e quebrar estereótipos narrativos. Em uma localidade chinesa, uma vaca cai do céu e afunda parte de um barco, onde um chinês pediria sua esposa em casamento.

Um Conto Chinês se propõe a narrar a história de Roberto, cidadão argentino, dono de uma loja de ferragens, fechado, sisudo, mesquinha e amargurado, daquele tipo que quase paga para não sorrir. Essas características dão a ele uma personalidade envolvente e movem o interesse em se apegar à persona do rapaz.

O mote dessa história se dará em encaixar a relação do cotidiano monótono desse solitário rapaz argentino com a chegada de um imigrante chinês. O chinês não entende espanhol, e o argentino não sabe chinês. Com isso, as situações de constrangimento se agravam, e se estabelece mais uma ferramenta comunicativa para a comédia fluir sem restrição. Contando com um simpaticíssimo ritmo narrativo, os diálogos entre os personagens centrais se deixam trocar por situações inusitadas, de gestos e mímicas intencionadas em uma urgente troca de informações. É importante perceber, ainda, a importância que o ar carrancudo do personagem de Darín dá para a construção de cenas que quase se ausentam de diálogos, mas mesmo assim possuem forte poder de comunicação e importância para a construção da trama. Os recorrentes palavrões de Roberto diante de sua não satisfação com o convívio do chinês em sua casa são o alívio cômico de incontáveis cenas.



Sem meias-palavras, o filme se descobre numa bela habilidade em persuadir o espectador. Simples e ponderado, o ritmo adotado em Um Conto Chinês é tão bem investido que seria possível assisti-lo sem cansar até mesmo numa extensão bem mais acentuada. Para isso, sua trilha sonora tem papel crucial em desenvolver essa sensibilidade narrativa.

É daqueles filmes que de início já nos prende a querer saber o que vai acontecer, e daí já se percebe outra grande capacidade de comunicação com o espectador, e, sem medo de ser presunçoso, sabe muito bem quais ferramentas utilizar para tornar essa simples história cotidiana em mais um bom e – para alguns – surpreendente longa argentino.


Destaque sonoro:




Crítica: Um Novo Despertar

Tal qual Gregor Samsa se depara ao acordar com o fato de não ser mais o que foi quando dormiu, Walter Black (Mel Gibson) percebe uma mudança extraordinária ao despertar.

Mandado para fora de casa por sua mulher não por conta de uma obstinação da parte dela, mas por completa inércia depressiva da parte dele, estado que cada vez mais afetava os filhos do casal e colocava toda a família numa espiral decadente.

Sem muito reagir ele acata a decisão da esposa e num quarto de hotel com um pouco de bebida e um filme japonês, Black é impulsionado a agir contra si mesmo, para finalizar o que havia começado muito tempo atrás e acabar com sua vida.

Tentativa frustrada pelo Castor, que será o arquiteto e construtor de Black para o caminho da recuperação de laços perdidos e objetivos desconexos. O roedor é o alter ego do protagonista, que sabe exatamente os passos a serem dados para que a normalidade seja estabelecida, a frustração alheia seja acalmada e os frutos dessa nova condição sejam colhidos.

E por algum tempo todos são convencidos pelo Castor de que um fantoche pode ser mesmo a solução, de que as palavras que há tanto se desejava estavam ali, no corpo da pessoa que devia pronunciá-las e o resto era um detalhe passageiro.

Essa possibilidade é desmentida, o Castor anulou Black para que ele não pudesse derrubar a sua construção, ele arquitetou um caminho que não poderia ser traçado por seu motor humano.

O Castor é totalitário e persuasivo, quando acuado ele repreende a todos e principalmente a Walter, que se torna ainda mais inerte com relação a si mesmo e aos outros.



Um Novo Despertar (The Beaver, 2011) expõe Gibson a um papel complexo e o ator corresponde a altura do desafio, a história é bem narrada, mesmo que conte com algumas simplificações, as relações familiares são superficialmente abordadas para dar espaço ao Castor e seu operário, o filme constrói muito bem as relações entre o indivíduo e seu alter ego peludo, deixando os estereótipos comuns tomarem parte nos papéis dos filhos e da mulher.

Contudo, The Beaver é um filme que vale a pena, é simples na narrativa e excepcional no trato com seu principal elemento, nisso Gibson e Jodie Foster (diretora) merecem grande mérito.





Crítica: O Enigma de Kaspar Hauser

Para muitas pessoas, é praticamente inimaginável a ideia de conviver em uma sociedade distinta, com costumes quase que antagônicos ao que ela adquiriu em sua vida. Viver em sociedade é, antes de tudo, partilhar costumes e crenças, além de preservar características históricas de seu povo e região. Em maior abrangência e discordância, o mundo ocidental e oriental preservam entre si as discrepâncias de duas características divergentes, mas que nem por isso deixam de funcionar ou, ainda, tornam-se superiores ou inferiores uma a outra. Essa aversão ao diferente, quando ocorrida, transpõe um medo do desconhecido, aquilo que caracteriza-se escuro, duvidoso. Essa análise parcial, ao qual um povo emite sobre outro, propõe uma observância que perdura por toda a história do homem.

Analisando um pensamento famoso e familiar, A Caverna de Platão defendia a ideia da ignorância e distorção sobre o pensamento de indivíduos que conviviam numa caverna, sem a noção de um mundo real que fosse exterior a ela. Dentre as principais ideias, Platão considerou, com sua análise metafórica, que o homem sustenta barreiras de pensamento que o impedem de esclarecer algumas visões básicas da vida, as quais, para outros povos, podem ser de fácil entendimento. O filósofo queria dizer, em poucas palavras, que as sombras da realidade refletidas dentro da caverna através da luz e do fogo tendenciavam uma análise irreal dos seres alienados, ou seja, aquilo que não era visto e palpado, era inexistente para um tipo de sociedade, que preservava costumes divergentes.

Como exemplo real do Mito da Caverna de Platão, cita-se os curiosos casos de Amala e Kamala, dois seres humanos criados por um lobo na Índia, por volta de 1920. Estas duas irmãs, após descobertas pela sociedade humana, apresentavam incapacidade de comunicação através da fala, eram quadrúpedes, uivavam, possuíam visão noturna melhor que diurna e conservavam a maioria dos costumes daquele animal que elas atendiam como mãe. Nesse caso, após a tentativa do homem socializá-las e humanizá-las, acabaram por falecer, conseguindo poucos progressos antes de suas mortes.

O que isso tudo tem a ver com o filme citado, O Enigma de Kaspar Hauser (Jeder Für Sich und Gott Gegen Alle, 1974), é que as referências a esse estudo sociológico e antropológico são imediatas. Nesse longa alemão dirigido por Werner Herzog e baseado em um fato real ocorrido na Alemanha em 1820, Kaspar Hauser apresenta uma reflexão direta sobre a cultura e os ensinamentos que a ele eram subtraídos. Criado em cativeiro por um misterioso homem, Hauser apresenta uma forte incompatibilidade racional diante da representação de sua idade. Não fala, quase não fica em pé, é incapaz de contestar sua condição e mostra-se cômodo no local de seu convívio. Este misterioso homem é criado sem qualquer contato social, e alimenta-se de refeições noturnas deixadas por um homem que nunca sabemos quem é.

Estes gritos assustadores ao redor, são o que chamam de silêncio?
Prólogo do filme.

Este enigma apresentado inicialmente é a referência para a futura população que o encontraria e para o próprio protagonista, em sua nova condição. Após aprender palavras e argumentos básicos, esse homem é deixado numa praça com uma carta em sua mão, que o apresenta e revela sua necessidade de abrigo social.

O que o filme tenta fazer, obviamente, é retratar a necessidade do convívio social para o ser humano. Confirmando os pensamentos modernos sobre a relação do homem com a sociedade, seu desenvolvimento se dá a partir dos costumes e aprendizagem que possui com os demais, atendendo a significados típicos de sua sociedade e retornando a ela as considerações, opiniões e entendimentos que considera justo e adequado, o qual se entende por sabedoria e evolução racional. Para Kaspar Hauser, a única referência que possui é a palavra cavalo, isso devido a aprendizagem da palavra seguida do contato com o brinquedo que possuía em seu cativeiro.



Apresentando essa única proposta narrativa, esse longa é muito mais uma representação do estudo sociológico do homem do que um mero filme convencional. A ausência de desdobramentos da história dos personagens, bem como a ausência de um antagonista e um problema emergencial ao longa, remetem-nos à essa característica ímpar, que sugere um pensamento acerca dessas condições do homem. Nesse sentido, o acompanhamento desse drama vivido por Bruno S., sugere uma profundidade concentrada na história do personagem, e abre mão de um final desconhecido.

Analisar O Enigma de Kaspar Hauser é tentar parar no tempo para refletir as divergências sociais dos povos que se distinguem por pensamentos, costumes e, principalmente, suas crenças. Esse raciocínio submete, emergencialmente, à concepção de certo e errado sob a ótica parcial de uma sociedade, com julgamentos de valores e princípios morais e éticos. O homem é um ser naturalmente social, sua necessidade de interação para a evolução individual e o desenvolvimento do pensar e a necessidade da procriação, torna obrigatória a aproximação do ser. Todas essas análises, partem, portanto, do entendimento que Hauser propõe à sua trajetória, e apresentam-se interpretativas sob a visão da história central. Assistir ao filme é, assim, uma oportunidade de reflexão individual sobre si, e noção de seu desenvolvimento e conhecimento, muito mais do que uma experiência cinematográfica exuberante e inesquecível.




 

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