Crítica: Gallipoli

Comecemos pelo fim: Aquela cena estática de um movimento paralisado pela força inimiga destrói o coração de qualquer cinéfilo. Você não quer (quer, sim) aceitar o seu fim, e confunde-se no turbilhão de pensamentos que o fará trocar ideias consigo mesmo, tentando encontrar os mais doces argumentos pra entender o por que das coisas. É tão chocante quanto o próprio drama do filme, ele nos constrói toda a história, envolve-nos e no fim derruba à todos, personagens e espectadores, por mais que tudo parecesse óbvio. Mas paralelo ao choque final, à confusão precoce, há o conforto do bom drama. A realidade e a ficção se misturam tão bem que é imperceptível  visualizar o que é um e o que é outro. E começam as reflexões mais abrangentes sobre o significado e a intenção daquele tipo de abordagem no longa.

Calcado numa história de guerra, a intenção geral da obra não transpira uma vontade unânime de se expressar através da própria guerra em si, ou seja, há o interesse maior e interessantíssimo de retratar a origem dos fatos, dar vida e mostrar o lado pessoal e humano dos dois personagens centrais. Só esse interesse já dá ao filme grande qualidade sobre a abordagem que ele se propõe a fazer. Não somos, portanto, “jogados” num campo de batalha nos minutos introdutórios, sem explicações de como tudo chegou àquele ponto, assim como o motivo da guerra e tudo mais. Não que desta forma fosse pior, mas cada abordagem compromete-se a se qualificar naquilo que ela arbitrariamente se propôs a fazer, e nesse caso, é dar à guerra uma visão um pouco mais humana de cada um que lá está.

Gallipoli (Gallipoli, 1981) é uma daquelas obras que já na primeira cena dão a entender que o filme valerá a pena. Archy Hamilton (muito bem interpretado por Mark Lee) é treinado pelo seu tio Jack (Bill Kerr), e sonha ser um corredor. Sonha mais pelo tio do que por si. Logo ali começam as primeiras e principais abordagens de Gallipoli: bravura, persistência, limite e principalmente patriotismo, tudo isso temperado num ar de conseqüências, que representam e movem cada ação humana, aquilo que é maior que a vida, é mais bravo que a morte e é o maior e mais benéfico alimento da alma humana: o sonho. A história se passa na Austrália ocidental, no ano de 1915, na 1ª guerra mundial, e é um dos raros filmes que representam a 1ª grande guerra. Será esta a grande idéia do filme: mostrar que em meio àquela vida interiorana humilde e pacata, mesmo com objetivos e sonhos sendo conquistados à cada competição e o talento e recordes se sobressaindo nas corridas, isso não bastava. A oportunidade de representar a pátria como aliada à Inglaterra contra os alemães e turcos foi mais forte. Isso soa melodramático demais à quem não se envolve ou não entende o espírito do filme, mas é para ser assim. Archy terá a companhia de um amigo que conheceu durante uma competição de corrida, Frank Dunne (Mel Gibson), e rumam ao recrutamento de jovens combatentes, enfrentando o sol e o deserto. Consegue alistar-se por méritos e consigo leva junto seu amigo nem tão competente assim. Eles não desejarão morrer, não desejarão matar, senão somente representar a força de seu país. Aprovados, partem à guerra sem noção do horror, munidos de coragem e adrenalina capazes de anular qualquer medo.

Talvez para alguns o filme não retrate a guerra com exatidão, tanto como uma batalha em si quanto àquilo que realmente aconteceu na 1ª guerra mundial. Com certa razão.  Porém, é importante entender Gallipoli como um filme, ainda, e seu foco em nenhum momento parece querer retratar este fato da história como a maior ênfase na trama. A perceber, sua duração de 112 minutos é fundamentada quase que exclusivamente aos acontecimentos e as abordagens dos dois personagens no pré-guerra. A história envolvendo a batalha da cidade de Galípoli, na Turquia, certamente exigiria uma explicação mais convincente e realista do caso, se assim fosse a proposta do longa escrito e dirigido pelo australiano Peter Weir. Contudo, o resumo final e direto daquilo que, em curtas linhas, representou a batalha, justifica a intenção e a relação feita entre aquilo que é um fato com a dramaticidade da história. A representatividade do fracasso e do resultado à grosso modo daquilo que ocorreu, faz o elo final a um desfecho memorável.



A comentar, ainda, a magnífica (sem hipérbole) fotografia do filme, que contempla a natureza do solo infértil da cidade onde vivem e passam, a destacar-se as cenas de caminhada nos desertos e alguns outros momentos do filme que são filmados em sentido 2D, num plano de ação horizontal, algo que futuramente ficaria muito famoso na marcante cena de Oldboy (Oldboy, 2003), sendo uma referência aos clássicos jogos de plataforma em videogames.

Certo ou errado, a guerra sempre trouxe e traz ensinamentos e aperfeiçoamentos a diversas áreas do conhecimento, que se desenvolvem devido ao desejo de superioridade sobre o inimigo. É deste avanço técnico e material mais percebido que gerações futuras tomam conhecimento e desfrutam daquilo que cada invenção pode proporcionar. Contudo, a guerra, assim como fora representado no longa, é uma escola gigantesca de ensinamentos humanitários, de sobrevivência e auto conhecimento humano, de contato com a capacidade de destruição da mente humana e sua – sempre presente – estupidez. É deste conhecimento que Archy e Frank irão compartilhar e aprender, e pagarão pela ignorância e malícia humana, sem chance de retornar e compartilhar com os familiares os maiores ensinamentos que a guerra teria lhes dado.





Crítica: Picnic na Montanha Misteriosa

Três garotas desaparecem repentinamente quando passeiam na Montanha Misteriosa. É realmente difícil comprar um filme por esta sinopse. Muitas vezes, o que se sobressai como qualidade em uma obra é simplesmente a forma como é contada. É fácil comprar uma ideia quando ela preenche e satisfaz ao interesse que temos em ver algo que se identifique com outras obras que já apreciamos. Talvez não seja sempre preciso elaborar roteiros infinitamente bem estudados, bem bolados e tramados para um final capaz de deixar o espectador boquiaberto. Em suma, vale a magia, a vivacidade e a transparência ocorrida no decorrer de sua abordagem central sobre a história em si; deve-se, sobretudo, ser cativante.

Esta não é, deixa-se claro, aquela obra a ser idolatrada, apaixonantemente capaz de fazer-nos criar uma identificação mais profunda, um elo, um carinho especial, que seja. Porém, antes de mais nada, é interessante esclarecer algo sobre o próprio título do filme. Picnic na Montanha Misteriosa é o título mais inocente que se poderia criar. Equivocado, ainda que condiga com a história. Enfim, procede, mas não vende. Nessa ocasião, mais valia optar por "A Montanha", ou algo assim. Enfim, basta.

Picnic na Montanha Misteriosa (Picnic at Hanging Rock, 1975) é um dos trabalhos iniciais da carreira do grande diretor Peter Weir, responsável pelo drama de O Show de Truman, (The Truman Show, 1998) e de Sociedade dos Poetas Mortos (Dead Poets Society, 1989), pela aventura de Gallipoli (Gallipoli, 1981) e pelo investigativo A Testemunha (Witness, 1985) e, embora seja um trabalho menos apreciado, já mostrava indícios do que poderia propor ao cinema.

O longa conta exclusivamente com um ar de mistério contínuo durante praticamente todo o longa. Ele tenta sustentar-se nessa única ferramenta para prender justamente o espectador para o desfecho final. O filme mostra-se invariavelmente consciente do que deseja, e, embora possa não agradar à todos, ao menos não o trai propondo e prometendo algo que ninguém verá. Dentre aquilo que pode-se destacar como qualidade na obra, a lentidão por vezes exagerada e monótona mostra que o interesse é realmente contar de forma branda e poética o mistério do desaparecimento de três jovens ao visitarem a montanha.



O filme se passa no dia de São Valentim, no ano de 1900, na Austrália Meridional, e baseia-se numa história real. Conta-se a história de um grupo de dezoito alunas de um colégio victoriano que são levadas para uma excurssão na tal montanha Hanging Rock. Lá, quatro das meninas decidem investigar a montanha até seu topo, onde três desaparecem. Uma, portanto, retorna para contar como acontecera o fato. Este desaparecimento é apresentado sem uma explicação concreta, é dúbio e interpretativo. Começam as hipóteses, a levantar-se possibilidades para entender o fato. Com um pouco ar de suspense e mostrando-se um tanto thriller, o mistério se estabelece. Entre idas e vindas, as garotas começam a resurgir, uma a uma, de maneira não esperada. Seria este um filme para se apreciar (talvez unicamente apreciar) o decorrer da história, já que seu final, embora justo por ser baseado em um fato verídico, não é digno dos melhores filmes do diretor. É justo, sim, mas não resolve.

A destacar-se, ainda, a esquisita (esquisita, não ruim) música permanente nas cenas de mistério. Ela até que cai bem com o contexto, com o clima e principalmente com o tempo e o local em que se passa, mas é digna das musiquinhas de centro da cidade. Entendamos como não-apropriada. Porém, se o efeito sonoro não dá tanta força para manter o clima, as imagens compensam facilmente, já que durante as lentas cenas e diálogos nos deixam proporcionar a beleza natural do local e da própria filmagem escolhida. Para defini-lo, talvez possamos dizer que é uma boa, lenta e investigativa subida a um monte chinês, prestes a encontrar um sábio monge que nos fará encontrar nosso próprio eu.




Crítica: 2001 - Uma Odisséia No Espaço

Por trás de todo gênio há um pouco de louco. A incompreensão inicial, contínua e a incapacidade de entender essa obra de forma definitiva é o caminho pra se entender melhor aquilo que a própria obra propõe. Aquilo que o traz aversão inicial e prolongada, misturando-se com o tempo, com a dúvida e a incerteza de seu próprio pensamento quanto às ideias alheias sobre este mesmo produto, é o mesmo caso que será julgado com desprezo e com brilhantismo. Se o homem, em sua história, não conhece a verdade ou a razão sobre aquilo que ele mesmo quer achar uma explicação sem saber se de fato exista, esta dúvida aparentemente eterna ou, quem sabe, erroneamente interpretada por quem se considera detentor de uma verdade absoluta e adquirida, esta será a maior obra da sétima arte capaz de resumir em infinitos tipos de análises aquilo que hoje representamos no universo e conhecemos sobre nós mesmos. Pouco.

Não se trata de uma tentativa de apresentar algo incompreensível, mas sim de retratar com frieza e exatidão o que ainda não compreendemos. A maior habilidade desta obra se dá na imensa capacidade de atingir tudo aquilo que inicialmente foi proposto. E isso não é pouca coisa. Essa ideia se fundamenta e ganha força quando se analisa o conteúdo principalmente filosófico e extremamente abrangente da proposta. É como se tentássemos abraçar o mundo, resumi-lo, traduzi-lo, explicá-lo e, principalmente, defini-lo por completo, a nós mesmos. Também não se trata de uma filosofia barata ou pensamento mascarado de procurar complexidade e profundidade inexistentes sobre uma abordagem rasa, de poucas análises e fundamentos. O que se procura, na verdade, é a sua dúvida e o seu conhecimento maior sobre si mesmo.

Se na nossa própria história, oriunda de milhares de anos, não nos mostra nem nos dá capacidade de um pensamento único sobre a explicação do todo, esta, dentre aquilo que a humanidade neste momento de sua história é capaz de produzir, será a melhor explanação sobre a aceitação da incapacidade atual de saber o que significa o mistério. Através das áreas do conhecimento por nós desenvolvidos e interpretados da natureza que nos mantém, obtivemos conclusões através de experimentos e hoje julgamos o nosso próprio universo e tudo aquilo que nele está contido em busca somente da única coisa que realmente nos parece interessar: cessar a angústia humana sobre sua razão de existir. Não, não penseis que ela já fora encontrada, demo-nos ao direito somente de imaginar que estamos a caminho, tão somente, sem inclusive tentar medir o tempo, julgando-nos perto ou distantes deste objetivo, já que nem sobre ele temos tanto conhecimento.

Esta obra única da história do cinema é assinada por um gênio, que em outra oportunidade já fora descrito aqui. Marcado por sua capacidade de sempre fazer adaptações para o cinema extremamente qualificadas de obras literárias, nessa obra aqui descrita, há um algo mais. Trata-se, novamente, de Stanley Kubrick. A obra: 2001 - Uma Odisséia no Espaço (2001: A Space Odyssey, 1968). Esta é a representação máxima de sua filmografia, de sua capacidade de expressão. Tanto que ela poderia ser encarada de forma paralela, sem a obrigatoriedade de comparações diretas a outros filmes, como outra obra qualquer da história do cinema. Isso porque o que este trabalho busca propor está justamente muito além de uma simples explanação, de uma apresentação de ideias tramadas num roteiro na tentativa de fazer cada expectador compreender a ideia do diretor, do roteirista, julgando tão somente o conteúdo da história que foi proposta. “2001” é mais. Quer mais, muito mais. E para chegar a seu objetivo, liberta-se de qualquer pensamento pré-definido sobre representação das ideias através das imagens. Se a abrangência e o interesse são infinitamente amplos, o comportamento e a apresentação do conteúdo tem que acompanhar o compasso. E o longa se mostra imenso nas imagens e na profundidade, e é, sem sombra de dúvidas, um filme muito atual. Não se trata de um filme para cinéfilos, não se trata de puramente entretenimento, não se trata de diversão. Seria esta uma magnífica expressão sobre um ponto-de-vista particular de explanar e demonstrar estas ideias através de um veículo de comunicação a toda a parte interessada.

Não serão, portanto, discutidos e demonstrados interesses pontuais na elaboração da trama e do roteiro sobre a obra. Não cabe criticar personagens nem interpretação de atores. Não cabe tentar encontrar simples palavras e argumentos para resumir tão cruamente o que é de uma abrangência infinitamente maior. Vale, sim, parar e analisar o todo, tudo que nele se insere, na ilusão de achar uma resposta unânime. Assim, Kubrick inicia sua épica jornada mostrando ao expectador quem ele é, de onde ele provém. Atribui, assim, um choque inicial, muito bem interpretado. Nos primeiros trinta minutos seremos primatas, desprovidos de uma inteligência mais aguçada, mais convincente e cômoda sobre si. Nisso, a proposta de voltar três milhões de anos no tempo, com a ausência – óbvia – da fala, não propõe nada, ao contrário, obriga o espectador a tirar conclusões, a entender-se, a encontrar respostas, aquilo que ele fará ao longo de todo o filme. Entraremos em contato com um misterioso monolito, instintivamente o estudaremos, assim como faremos posteriormente com o mesmo monolito, passados os três milhões de anos, dando a ideia de não-progressão, ou de uma progressão imaginária e ilusória. Somos ainda como primatas na vastidão da complexidade do universo. Isso, claro, marcado por uma trilha sonora indescritível, mas que aqui, cruelmente, tentarei fazer. Diante do interesse maior deste longa, não se poderia, jamais, abdicar-se da oportunidade de utilizar-se o cérebro de cada espectador sem a consciência do próprio para fazê-lo entender a mensagem central de cada cena. A demonstração lenta dos acontecimentos e a narrativa sem pressa da história tenta-nos fazer acompanhar o ritmo, nos acalmar e preparar para o que está por vir. Serão as inconfundíveis e marcantes trilhas sonoras dos filmes de Kubrick que resumirão em áudio aquilo que se poderia falar. Porém, assim como tudo no longa, é melhor propor a interpretação do que entregar uma explicação pronta no conforto de entender facilmente uma ideia. Daí, até chegar à marcante cena do homem entrando em contato com seu primeiro instrumento de trabalho e manuseio, já se espera ter preparado o terreno para o que tem por vir.



Passados estes minutos introdutórios, faz-se o maior corte da história do cinema: três milhões de anos. E parece que estamos em contato com uma nova espécie: o homem detentor de conhecimento. Sua inteligência está no foco do filme, e o fará ir à Lua e à Júpiter. Longe, como sua imaginação. Porém, outras propostas seguirão, dando início às abordagens mais contemporâneas, principalmente a relação do homem com a máquina, utilizando-se de uma inteligência artificial, representada pelo computador HALL-9000. Esta odisseia no espaço buscará mostrar que tudo pode ser maior, muito maior que nossa própria imaginação. Que o bloqueio intelectual fará o homem parar no tempo, inconsciente de sua própria capacidade e de seu próprio limite. Porém, uma vez que não se conhece a existência do todo, o limite não haverá, será somente encontrado quando tudo lhe for explicado, e até lá, pode-se decorrer um tempo inimaginável, incalculável, tanto quanto obstáculos ainda não esperados. Esta jornada audaciosa do homem poderá lhe custar um contato mental proporcional ao seu interesse, onde se propõe uma leitura sobre a possibilidade de uma existência de inteligência paralela à do homem.

Quando a obra termina, claro, muito se observa. Há quem não entenda nada, há quem diga que entendeu tudo, há quem discorde, concorde, questione, ame, odeie ou considere-o um excelente resumo do atual estágio da inteligência da vida humana. Resultarão, por fim, diversas interpretações sobre a obra que tenta interpretá-lo. Nessa instabilidade sobre uma conclusão e definição única da obra de Kubrick, todos poderão considerá-lo uma viagem, em qualquer sentido, mas que propõe e atinge com excelência seu interesse original: enaltecendo o pensamento, a interpretação, a imaginação. Aliás, quando da elaboração do livro escrito por Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke, tudo já se resumia no pensamento de seus autores, afirmando que “se algum dia alguém disser que entendeu o significado e a obra por completo, nós fracassamos”.





 

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